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Revelação mesmeriana - Edgar Allan Poe

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Relativo ao “mesmerismo”, doutrina do médico alemão Frederico Antônio Mesmer (1734-
1805. Ele julgava haver descoberto no magnetismo animal a terapêutica para todas as
doenças e, sobre sua pretendida descoberta, escreveu vários livros. N.T.)

Embora ainda se possa cercar de dúvida a análise racional do magnetismo, seus
espantosos resultados são agora quase universalmente admitidos. E os que, dentre todos,
duvidam, são simples descrentes profissionais, casta inútil e desacreditada.

Não pode haver mais completa perda de tempo que a tentativa de provar, nos dias atuais, que o
homem, pelo mero exercício da vontade, pode impressionar seu semelhante a ponto de
conduzi-lo a uma condição anormal cujos fenômenos muito estreitamente se assemelham
aos da morte, ou pelo menos se assemelham mais a eles do que os fenômenos de
qualquer outra condição normal de que tenhamos conhecimento, provar que, enquanto
em tal estado, a pessoa assim impressionada só emprega com esforço, e mesmo assim
fracamente, os órgão externos dos sentidos, embora perceba, com percepção agudamente
refinada e através de canais supostamente desconhecidos, questões além do alcance dos
órgãos físicos; provar que, além disso, suas faculdades intelectuais são maravilhosamente
intensificadas e revigoradas; provar que suas simpatias para com a pessoa que assim age
sobre ela são profundas; e, finalmente, provar que sua suscetibilidade à ação magnética
aumenta com a freqüência desta, ao mesmo tempo que em idêntica proporção, os
fenômenos característicos obtidos se tornam mais extensos e mais pronunciados.
Digo que seria superfluidade demonstrar tais coisas - que são as leis do magnetismo em
seu aspecto geral. E não irei infligir hoje a meus leitores tão desnecessária demonstração.
Sou impelido, arrostando mesmo todo um mundo de preconceitos, a pormenorizar sem
comentários, a notabilíssima essência de um colóquio ocorrido mim e um magnetizado.
Por muito tempo eu me acostumara a magnetizar a pessoa em apreço (o Sr. Vankirk) e
sobrevieram a suscetibilidade aguda e a intensidade da percepção magnética, como de
hábito. Durante numerosos meses viera sofrendo de tísica bem caracterizada, de cujos
efeitos mais angustiantes fora aliviado graças a minhas manipulações; e, na noite de
quarta-feira, quinze do corrente, fui chamado à sua cabeceira.
O enfermo sofria aguda dor na região do coração e respirava com grande dificuldade,
tendo todos os sintomas comuns da asma. Em espasmos semelhantes achara sempre
alívio com a aplicação de mostarda nos centros nervosos, mas naquela noite isso tinha
sido tentado em vão. Ao entrar em seu quarto o doente saudou-me com carinhoso sorriso
e, embora evidentemente sofresse grandes dores corporais, parecia estar mentalmente
sem qualquer perturbação .
- Mandei chamá-lo hoje - disse-me - não tanto para dar-me um alívio ao corpo como para
satisfazer-me relativamente a certas impressões psíquicas que, nos últimos tempos,
causaram-me grande ansiedade e surpresa. Não preciso dizer-lhe quanto sou cético a
respeito da imortalidade da alma. Não posso negar que sempre existiu nessa própria
alma, que andei negando, um como que vago sentimento de sua realidade. Mas esse
indeciso sentimento em tempo algum se ampliou à convicção. Nada havia de comum
entre minha razão e ele. Todas as tentativas de uma análise lógica resultaram na verdade,
em deixar-me mais cético do que antes. Aconselharam-me a estudar Cousin. Estudei-o
em suas próprias obras bem como nas de seus ecos europeus e americanos. Esteve em
minhas mãos, por exemplo, o Charles Elwood do Sr. Browson. Li-o com profunda
atenção. Achei-o inteiramente lógico; apenas as partes que não eram simplesmente
lógicas eram, infelizmente, os argumentos iniciais do incrédulo herói do livro. Em seu
resumo pareceu-me evidente que o raciocinador não tivera êxito sequer em convencer-se
a si mesmo. Seu fim claramente esquecera o início, como o governo de Trínculo. Em
suma, não tardei em perceber que, se um homem deve ser intelectualmente convencido
da própria imortalidade, nunca será convencido pela mera abstração que por tanto tempo
foi moda entre os moralistas da Inglaterra, da França e da Alemanha. As abstrações
podem divertir a mente e exercitá-la, mas não tomam posse dela. Neste mundo terreno
pelo menos, a filosofia…estou persuadido, apelará sempre em vão para que contemplemos
as qualidades como coisas.
- A vontade pode concordar; a alma, o intelecto, nunca. Repito, pois, que só senti um
tanto, e nunca acreditei intelectualmente. Mas, há pouco, houve certo aguçamento dessa
sensação até ao ponto de quase parecer a aquiescência da razão, tanto que eu achava
difícil distinguir entre ambos. Creio-me, pois, capaz de atribuir esse efeito à influência
magnética. Não posso explicar melhor o que penso senão pela hipótese de que a
intensificação magnética me capacita a perceber um encadeamento de raciocínios que,
em minha existência anormal, me convence, mas que, em plena concordância com o
fenômeno magnético, não se estende, a não ser por meio de seu efeito, à minha condição
normal. Estando magnetizado, o raciocínio e a sua conclusão, a causa e seu efeito, estão
juntamente presentes. No meu estado natural, desaparecendo a causa, só o efeito
permanece e talvez só parcialmente.
Tais considerações levaram-me a pensar que certos bons resultados podem ser a
conseqüência de uma série de bem orientadas perguntas, a mim propostas enquanto
magnetizado. Muitas vezes você observou o profundo auto conhecimento demonstrado
pelo magnetizado, a extensa consciência que ele tem de todos os pontos relativos à
condição magnética em si; ora, desse auto conhecimento podem ser deduzidas idéias
suficientes para a organização adequada de um catecismo.
Consenti naturalmente, em fazer tal experiência. Poucos passes levaram o Sr. Vankirk ao
sono mesmérico. Sua respiração tornou-se imediatamente mais fácil e ele pareceu não
sofrer qualquer incômodo físico. Seguiu-se, então, a conversação abaixo (V., no diálogo
representa o paciente, e P. representa minha pessoa)
P - Está dormindo?
V- Sim… não ; preferiria dormir mais profundamente.
P- ( depois de poucos passes mais.) Está dormindo agora?
V- Sim.
P - Como pensa que terminará sua enfermidade atual?
V- (Depois de longa hesitação e falando como que com esforço.)Vou morrer.
P- A idéia de morte o aflige?
V - (Muito rapidamente.) Não.
P- Agrada-lhe essa perspectiva?
V - Se eu estivesse acordado gostaria de morrer, mas agora isso não importa. A condição
magnética está bastante perto da morte para me satisfazer.
P. - Desejaria que se explicasse, Sr. Vankirk.
V. - Desejo fazê-lo, mas isso requer esforço maior do que aquele de que sou capaz. O
senhor não interrogou adequadamente.
P. -Que perguntarei então?
V. - Deve começar pelo começo.
P. - O começo? Mas onde é o começo?
V. - O começo, como sabe, é Deus. (Isto foi dito numa voz baixa, flutuante, e com
todos os sinais da mais profunda veneração.)
P. - Que é Deus, então?
V. - (Hesitando durante alguns minutos.) Não posso
P. - Deus não é espírito?
V. - Enquanto estava desperto, eu sabia o que queria dizer com a palavra "espírito",
mas agora parece-me apenas uma palavra tal, por exemplo, como verdade, beleza: quero
dizer, uma qualidade.
P. - Não é Deus imaterial?
V. - Não há imaterialidade; é uma simples palavra. O que não é matéria não é
absolutamente, a menos que as qualidades coisas.
P. - Deus, então, é material?
V. - Não. (Esta resposta me espantou bastante.)
P - Então que é ele?
V -(Depois de longa pausa, murmurando.) Vejo... mas é uma coisa difícil de dizer.
(Outra pausa longa.) Ele não é espírito, porque existe. Nem é matéria, tal como você
entende. Mas há gradações da matéria de que o homem não conhece nada, a mais densa
impelindo a mais sutil, a mais sutil invadindo a mais densa. A atmosfera, por exemplo,
movimenta o princípio elétrico, ao passo que o princípio elétrico penetra a atmosfera.
Estas gradações da matéria aumentam em raridade ou sutileza até chegarmos a uma
matéria imparticulada - sem partículas -, indivisível - una - e aqui a lei de impulsão e de
penetração é modificada. A matéria suprema ou não particulada não somente penetra
todas as coisas, mas movimenta todas as coisas, e assim é todas as coisas em si mesma.
Esta matéria é Deus. Aquilo que os homens tentam personificar na palavra "pensamento"
é esta matéria em movimento.
P. - Os metafísicos sustentam que toda ação é redutível a movimento e pensamento,
e que este é a origem daquele.
V. - Sim. E agora vejo a confusão de idéias. O movimento é a ação do espírito e não
do pensamento. A matéria imparticulada ou Deus, em estado de repouso (tanto quanto
podemos concebê-lo ) é o que os homens chamam espírito. E o poder do auto movimento
(equivalente com efeito à volição humana) é, na matéria imparticulada, o resultado de sua
unidade e de sua onipotência; como não sei, e agora vejo claramente que jamais o saberei.
Mas a matéria imparticulada, posta em movimento por uma lei ou qualidade existente
dentro de si mesma, é pensamento.
P. Poderá dar-me idéia mais precisa do que chama você matéria imparticulada?
V. As matérias de que o homem tem conhecimento escapam aos sentidos gradativamente.
Temos, por exemplo, um metal, um pedaço de madeira, uma gota de água, a atmosfera,
um gás, o calórico, a eletricidade, o éter luminoso. Ora, chamamos todas essas coisas
matérias e abrangemos toda a matéria numa definição geral; mas a despeito disto, não
pode haver duas idéias mais essencialmente distintas do que a que ligamos a um metal e
a que ligamos ao éter luminoso. Quando alcançamos este último, sentimos uma
inclinação quase irresistível a classificá-lo como espírito ou como o nada. A única
consideração que nos retém é nossa concepção de sua constituição atômica, e aqui
mesmo temos necessidade de buscar auxilio na nossa noção de um átomo, como algo que
possui, com pequenez infinita, solidez, palpabilidade, peso. Suprimamos a idéia do éter
como uma entidade ou, pelo menos, como matéria. À falta de melhor palavra podemos
denominá-lo espírito. Dê agora um passo para além do éter luminoso. Conceba uma
matéria como muito mais rarefeita do que o éter, assim como o éter é muito mais rarefeito
do que o metal, e chegaremos imediatamente (a despeito de todos os dogmas da escola) a
uma única massa, uma matéria imparticulada. Pois, embora possamos admitir infinita
pequenez nos próprios átomos, a infinidade da pequenez nos espaços entre eles é um
absurdo. Haverá um ponto, haverá um grau de rarefação no qual, se os átomos são
suficientemente numerosos, os interespaços devem desaparecer e a massa unificar-se de
todo. Mas, sendo agora posta de lado a consideração da constituição atômica, a natureza
da massa resvala inevitavelmente para aquilo que concebemos como espírito. E claro, que
ela é tão matéria ainda quanto antes. A verdade é que não se pode conceber o espírito
sem que seja possível imaginar o que não é. Quando nos lisonjeamos por haver formado
essa concepção, apenas iludimos a nossa inteligência com a consideração da matéria
infinitamente rarefeita.
P. - Parece-me haver uma insuperável objeção à idéia de unidade absoluta, e ela é a da
bem pouca resistência sofrida pelos corpos celestes nas suas revoluções pelo espaço,
resistência agora verificada, é verdade, como existente em certo grau, mas que é, não
obstante, tão leve a ponto de ter sido completamente desdenhada pela sagacidade do
próprio Newton. Sabemos que a resistência dos corpos está principalmente com a sua
densidade. A absoluta unificação é a absoluta densidade. Onde não há interespaços não
pode haver passagem. Um éter absolutamente denso oporia um obstáculo infinitamente
mais eficaz à marcha de um astro do que o faria um éter de diamante ou de ferro.
V. - Sua objeção é respondida com uma facilidade que está quase na razão da sua
aparente irresponsabilidade. Quanto à marcha de um astro , não faz diferença se o astro
passa através do éter ou se o éter através dele. Não há erro astronômico mais inexplicável
do que o que relaciona o conhecido retardamento dos cometas com a idéia de sua
passagem através de um éter; porque, por mais rarefeito que se suponha esse éter, oporia
ele obstáculo a qualquer revolução sideral em um período bem mais breve do que tem
sido admitido por aqueles astrônomos que têm tentado tratar pela rama um ponto que
eles acham impossível compreender. O retardamento realmente experimentado é, por
outro lado, quase igual àquele que pode resultar da fricção do éter na sua passagem
instantânea através do orbe. No primeiro caso, a força retardadora é momentânea e
completa dentro de si mesma; no outro, é infinitamente crescente.
P. - Mas, em tudo isso, nesta identificação da simples matéria como Deus, não haverá
algo de irreverência? (Fui obrigado a repetir essa pergunta antes que o magnetizado
compreendesse plenamente o que eu queria dizer.)
V. - Pode dizer por que a matéria seria menos respeitada do que o pensamento? Mas você
esquece que a matéria de que falo é, a todos os respeitos, o verdadeiro "pensamento" ou
"espírito" das escolas, no que se refere às suas altas capacidades, e é, além disso a
"matéria" dessas escolas ao mesmo tempo. Deus com todos os poderem atribuídos ao
espírito não é senão a perfeição da matéria.
P. - Você afirma então que a matéria imparticulada em movimento é pensamento?
V. - Em geral, esse movimento é o pensamento universal da mente universal. Esse
pensamento cria. Todas as coisas criadas são apenas os pensamentos de Deus.
P. - Você diz "em geral".
V. - Sim. A mente universal é Deus. Para as novas individualidades a matéria é
necessária.
P. - Mas você agora fala de "espírito" e "matéria", como fazem os metafísicos.
V. - Sim, para evitar confusão . Quando eu digo espírito, significa a matéria imparticulada
ou suprema; por matéria, entendo todas as outras espécies.
P. - Você dizia que "para novas individualidades a matéria é necessária".
V. - Sim, pois o espírito, existindo incorporeamente, é simplesmente Deus. Para criar
seres individuais pensantes foi necessário encarnar porções do espírito divino. Por isso o
homem é individualizado. Desvestido do invólucro corpóreo seria Deus. Ora, o movimento
particular das porções encarnadas da matéria imparticulada é o pensamento do homem,
assim como o movimento do todo é o de Deus.
P. - Diz você que desvestido do corpo o homem seria Deus? -
V. - (Depois de muita hesitação.) Eu não podia ter dito isso. É um absurdo.
P. - (Consultando minhas notas.) Você disse que "desvestido do invólucro corpóreo o
homem seria Deus".
V. - Isto é verdade. O homem, assim despojado seria Deus, seria desindividualizado.
Mas ele nunca pode ser assim despojado - pelo menos nunca será - a menos que
devêssemos imaginar uma ação de Deus voltando sobre si mesma, uma ação fútil e sem
objetivo. O homem é uma criatura. As criaturas são pensamentos de Deus. E é da
natureza do pensamento ser irrevogável.
P.- Não compreendo. Você diz que o homem nunca se despojará do corpo?
V. - Digo que ele nunca estará sem corpo.
P. - Explique-se.
V. - Há dois corpos: o rudimentar e o completo, correspondendo às duas condições da
lagarta e da borboleta. O que chamamos "morte" é apenas a dolorosa metamorfose. Nossa
atual encarnação é progressiva, preparatória, temporária. A futura é perfeita, final,
imortal. A vida derradeira é o fim supremo.
P. - Mas nós temos conhecimento palpável da metamorfose da lagarta.
V. - "Nós", certamente, mas não a lagarta. A matéria de que nosso corpo rudimentar é
composta está ao alcance dos órgãos rudimentares que estão adaptados à matéria de que
é formado o corpo rudimentar, mas não à de que é composto o corpo derradeiro. O corpo
derradeiro escapa assim aos nossos sentidos rudimentares e percebemos apenas o casulo
que abandona, ao morrer, a forma interior, e não essa própria forma interior; mas esta
forma interior, bem como o casulo, é apreciável por aqueles que já adquiriram a vida
derradeira.
P. - Você disse muitas vezes que o estado magnético se assemelha muito de perto à
morte. Como é isso?
V. - Quando digo que ele se assemelha à morte, quero dizer que se parece com a vida
derradeira, pois quando estou no sono magnético os sentidos de minha vida rudimentar
ficam suspensos e percebo as coisas externas diretamente, sem órgãos, por um meio que
empregarei na vida derradeira e inorgânica.
P.- Inorgânica?
V.- Sim. Os órgãos são aparelhos pelos quais o indivíduo é posto em relação sensível com
certas categorias e formas da matéria, com exclusão de outras categorias e formas. Os
órgãos do homem estão adaptados à sua condição rudimentar e a ela somente; sua
condição última, sendo inorgânica, é de compreensão ilimitada em todos os pontos,
exceto um: a natureza da vontade de Deus. Isto é, matéria imparticulada. Você pode ter
uma idéia distinta do corpo derradeiro concebendo-o como sendo totalmente cérebro.
"Ele" não é isso; mas uma concepção dessa natureza aproximará você de uma
compreensão do que ele "é". Um corpo luminoso comunica vibração ao éter luminoso. As
vibrações geram outras semelhantes na retina; estas, por sua vez, comunicam outras
semelhantes ao nervo ótico; o nervo leva outras semelhantes ao cérebro; o cérebro
também outras iguais à matéria imparticulada que o penetra. O movimento desta última
é pensamento, do qual a percepção é a primeira vibração. Este é o modo pelo qual o
pensamento da vida rudimentar se comunica com o mundo exterior e este mundo exterior
é limitado, para a vida rudimentar, pelas reações de seus órgãos.
Mas, na vida derradeira e inorgânica, o mundo exterior comunica-se com o corpo inteiro
(que é de uma substância afim da do cérebro como já disse), sem nenhuma outra
intervenção que não a de um éter infinitamente mais rarefeito, do que mesmo o éter
luminífero e com esse éter, em uníssono com ele, todo o corpo vibra, pondo em
movimento a matéria imparticulada que o penetra. É à ausência de órgãos reativos,
contudo, que devemos atribuir a quase ilimitada percepção da vida derradeira. Para os
seres rudimentares os órgãos são as gaiolas necessárias para encerrá-los até que estejam
emplumados.
P. - Você fala de seres rudimentares. Há outros seres rudimentares e pensantes além do
homem?
V. - A conglomeração numerosa de matéria dispersa em nebulosas, planetas, sóis e
outros corpos que nem são nebulosa, nem planetas, tem como único fim suprir o
pabulam para a reação dos órgãos de uma infinidade de seres rudimentares. Sem a
necessidade do rudimentar, anterior à vida derradeira, não teria havido corpos tais como
esses. Cada um deles é ocupado por uma distinta variedade de criaturas orgânicas,
rudimentares e pensantes. Em todas, os órgãos variam com os característicos do
habitáculo. Na morte ou metamorfose, estas criaturas, gozando da vida derradeira da
imortalidade - e conhecedoras de todos os segredos, menos o único, operam todas as
coisas e se movem por toda a parte por simples ato de vontade. Habitam, não as estrelas,
que para nós parecem as únicas coisas tangíveis e para conveniência, cegamente cremos
que o espaço foi criado, mas o próprio espaço, esse infinito cuja imensidão
verdadeiramente substantiva absorve as sombras estelares, apagando-as como não
entidades da visão dos anjos.
P. - Você diz que "sem a necessidade da vida rudimentar” não teria havido estrelas. Mas
qual a razão dessa necessidade?
V. - Na vida inorgânica, bem como geralmente na matéria inorgânica, nada há que impeça
a ação de uma lei simples e única: a Divina Vontade. Com o fim de criar um empecilho, a
vida orgânica e a matéria (complexas, substanciais e oneradas por leis ) foram criadas.
P. - Mais ainda, que necessidade havia de criar esse empecilho?
V. - O resultado da lei inviolada é perfeição, justiça, felicidade negativa. O resultado da lei
violada é imperfeição, injustiça, dor positiva. Por meio dos empecilhos produzidos pelo
número, complexidade e substancialidade das leis da vida orgânica e da matéria, a
violação da lei se torna, até certo ponto, praticável. Esta dor, que na vida inorgânica é
impossível, torna-se possível na orgânica.
P. - Mas em vista de que resultado bom se torna possível a dor?
V. - Todas as coisas são boas ou más por comparação . Uma análise suficiente mostrará
que o prazer, em todos os casos é apenas o contraste da dor. Prazer positivo é mera idéia.
Para ser feliz até certo ponto, devemos ter sofrido na mesma proporção. Jamais sofrer
equivaleria a não ter jamais sido feliz. Mas está demonstrado que na vida inorgânica a
dor não pode existir; daí a necessidade da dor para a vida orgânica. A dor da vida
primitiva da terra é a única base da felicidade da derradeira vida no Céu.
P. - Contudo, ainda há uma de suas expressões que não acho possibilidade de
compreender: "a imensidão verdadeiramente substantiva do infinito".
V. - É provavelmente, porque não tem a concepção suficientemente genérica do próprio
termo substância. Não devemos olhá-la como uma qualidade, mas como um sentimento:
é a percepção, nos seres pensantes, da adaptação da matéria à organização deles. Há
muitas coisas sobre a Terra que seriam nada para os habitantes de Vênus; muitas coisas
visíveis e tangíveis em Vênus que não poderíamos ser levados a apreciar como
absolutamente existentes. Mas para os seres inorgânicos - para os anjos - o todo da
matéria imparticulada é substância, isto é, o todo do que chamamos "espaço" é para eles
a mais verdadeira substancialidade; os astros, entretanto, do ponto de vista de sua
materialidade, escapam ao sentido angélico, justamente na mesma proporção em que a
matéria imparticulada, do ponto de vista de sua imaterialidade, escapa ao sentido
orgânico.
Ao pronunciar o magnetizado estas últimas palavras em voz fraca, notei-lhe na fisionomia
singular expressão que me alarmou um tanto e induziu-me a despertá-lo imediatamente.
Logo que fiz isto, com um brilhante sorriso a iluminar todas as suas feições caiu para trás
no travesseiro e expirou. Notei que, menos de um minuto depois seu cadáver tinha toda a
rígida imobilidade da pedra. Sua fronte estava fria como gelo. Assim, geralmente, só se
mostraria depois de longa pressão da mão de Azrael. Ter-se-ia, realmente, o magnetizado,
na última parte de sua dissertação, dirigido a mim lá do fundo das regiões das sombras?

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